Traduzirmo-nos
A partir de
um poema do escrito pelo inglês Philip Larkin, o autor desta nota afirma: “Para
traduzir um texto satisfatoriamente, é preciso desejá-lo”.
Por Andres
Neuman
Philip Larkin, Poeta bibliotecária,
romancista e crítico de jazz britânico
Recordo,
traduzo o meu amado Larkin: “A noite não deixou nada mais que mostrar:/ nem
vela nem vinho que deixamos a meio,/ nem o prazer de tocar-se;/ somente este
signo da tua vida/ caminhando dentro da minha”.
Amor e
tradução são parecidos na sua gramática. Amar alguém implica transformar as
suas palavras nas nossas. Esforçarmo-nos para entender a outra pessoa e,
inevitavelmente, interpretá-la erroneamente. Construir uma linguagem precária comum.
Para traduzir um texto satisfatoriamente é preciso desejá-lo. Cobiçar o seu
sentido. Uma certa necessidade de possuir a sua voz. Nesse diálogo que alterna
entre a rotina e fascinação, conhecimento prévio e aprendizagem contínua, ambas
as partes acabam modificadas.
O amante
vê-se na pessoa amada buscando semelhanças nas diferenças. Cada pequena
descoberta fica incorporada no vocabulário compartido. Embora, por muito que se
tente capturar o idioma do outro, no final o que se recebe é uma lição acerca
do próprio idioma. Assim, sedutora e refrátaria, é a sua convivência. Quem
traduz aproxima-se de uma presença estranha na qual, de alguma forma, se
reconheceu. O texto representa um mistério parcialmente indecifrável e, ao
mesmo tempo, uma sorte de familiaridade essencial. Como se o tradutor e o texto
já se tivessem falado antes de se encontrarem.
Tradutores e
amantes desenvolvem uma susceptibilidade quase maníaca. Duvidam de cada palavra,
cada gesto, cada insinuação que surge à sua frente. Suspeitam invejosamente
quando ouvem: “O que será que quis dizer-me na realidade? Amando e traduzindo,
a intenção do outro choca com o limite da minha experiência. Eu leio-me ao
ler-te. Eu escuto na medida em que saibas falar comigo. Mas, se digo algo, é
porque falaste comigo. Dependo da tua palavra e a tua palavra precisa de mim. Salva-se
nos meus acertos, sobrevive aos meus erros. Para que isto funcione, temos que
admitir os obstáculos: não vamos poder ler-nos literalmente. Vou manipular-te
com a minha melhor vontade. O que não se negoceia é a emoção.
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