quarta-feira, 31 de outubro de 2012

Traduzirmo-nos (Tradução de um texto de Andres Neuman)


Traduzirmo-nos

A partir de um poema do escrito pelo inglês Philip Larkin, o autor desta nota afirma: “Para traduzir um texto satisfatoriamente, é preciso desejá-lo”.

Por Andres Neuman


Philip Larkin, Poeta bibliotecária, romancista e crítico de jazz britânico

Recordo, traduzo o meu amado Larkin: “A noite não deixou nada mais que mostrar:/ nem vela nem vinho que deixamos a meio,/ nem o prazer de tocar-se;/ somente este signo da tua vida/ caminhando dentro da minha”.

Amor e tradução são parecidos na sua gramática. Amar alguém implica transformar as suas palavras nas nossas. Esforçarmo-nos para entender a outra pessoa e, inevitavelmente, interpretá-la erroneamente. Construir uma linguagem precária comum. Para traduzir um texto satisfatoriamente é preciso desejá-lo. Cobiçar o seu sentido. Uma certa necessidade de possuir a sua voz. Nesse diálogo que alterna entre a rotina e fascinação, conhecimento prévio e aprendizagem contínua, ambas as partes acabam modificadas. 

O amante vê-se na pessoa amada buscando semelhanças nas diferenças. Cada pequena descoberta fica incorporada no vocabulário compartido. Embora, por muito que se tente capturar o idioma do outro, no final o que se recebe é uma lição acerca do próprio idioma. Assim, sedutora e refrátaria, é a sua convivência. Quem traduz aproxima-se de uma presença estranha na qual, de alguma forma, se reconheceu. O texto representa um mistério parcialmente indecifrável e, ao mesmo tempo, uma sorte de familiaridade essencial. Como se o tradutor e o texto já se tivessem falado antes de se encontrarem.

Tradutores e amantes desenvolvem uma susceptibilidade quase maníaca. Duvidam de cada palavra, cada gesto, cada insinuação que surge à sua frente. Suspeitam invejosamente quando ouvem: “O que será que quis dizer-me na realidade? Amando e traduzindo, a intenção do outro choca com o limite da minha experiência. Eu leio-me ao ler-te. Eu escuto na medida em que saibas falar comigo. Mas, se digo algo, é porque falaste comigo. Dependo da tua palavra e a tua palavra precisa de mim. Salva-se nos meus acertos, sobrevive aos meus erros. Para que isto funcione, temos que admitir os obstáculos: não vamos poder ler-nos literalmente. Vou manipular-te com a minha melhor vontade. O que não se negoceia é a emoção.


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